terça-feira, 13 de setembro de 2011

Psicopatas: Seres das Sombras

Quando o Mal Triunfa


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Crianças assassinadas, abandonadas, torturadas – as notícias que têm chocado o Brasil lembram que o lado monstruoso do homem pode até ser contido, mas jamais será definitivamente domado.
A morte de uma menina de 5 anos aparentemente jogada da janela do 6º andar já seria por si só brutal – mas o caso é tanto mais chocante porque o pai da garotinha aparece como suspeito do crime.  Os brasileiros que se comoveram com o assassinato de Isabella Oliveira Nardoni acabavam de ser expostos a outra crônica de horrores: a empresária Sílvia Calabresi Lima, de Goiânia, torturava cotidianamente uma menina de 12 anos em sua área de serviço. Ao lado desses casos tenebrosos, outras barbaridades despontam no noticiário: a garota que pulou da janela do 4º andar para fugir do pai agressor, as crianças que ganharam bolo envenenado da vizinha, o bebê jogado no lago. Essa sucessão de fatos macabros traz a incômoda lembrança de uma constante da história humana: a maldade. O mal está presente em toda parte. Na grande arena da política internacional pode-se divisá-lo no genocídio de Darfur, na repressão política em Cuba e no Tibete, no terrorismo da Al Qaeda e das Farc, na leniência do governo americano com práticas de tortura. Esse tipo de mal é mais assimilável, pois se esconde atrás de razões de estado e de pretensas causas nobres.
Mas como metabolizar na alma o mal doméstico, que vem nu, sem disfarces, sem o véu de sofismas que poderiam desculpá-lo e torná-lo suportável pela racionalização de sua origem? Como entender que o sorriso lindo e angelical de Isabella possa ter sido substituído pela máscara da morte no frescor de seus 5 anos de vida? Esse tipo de mal não cabe sequer na aceitação de que coisas ruins podem acontecer a pessoas boas. Esse tipo de mal parece ser uma zona de sombra que aprisiona a alma humana. Esse tipo de mal simplesmente existe. Isso é o que o torna mais assustador.
Desde os primórdios da humanidade essas situações-limite, insuportáveis, lançaram a razão humana em tortuosos exercícios mentais. “É desígnio dos deuses, e a única coisa a fazer é resignar-se” – foi essa desde sempre a saída mais humana para evitar a loucura da dor insuperável provocada pelo mal do mundo. O filósofo grego Xenófanes de Cólofon (560-478 a.C.) foi talvez o primeiro a se insurgir contra os deuses e suas maquinações. Xenófanes concluiu simplesmente que o mal perpassa todo o universo e da sua força nem os deuses escapam. Pelos séculos afora teólogos e filósofos tentaram ajudar a humanidade a conviver com o mal. Mais recentemente as explicações desceram do plano metafísico para se tornar objeto de estudo da sociologia, da psicologia e das ciências biológicas. Nenhuma teoria, porém, é capaz de abarcá-lo, de amainar o choque que ele provoca no corpo e na alma ou a destruição que causa no seio das famílias e no julgamento que fazemos de nós mesmos ao deparar com seres humanos agindo como bestas. Talvez a única certeza sobre o mal seja esta: ele é incontornável.
A palavra “mal” tende a levantar objeções dos céticos. Não será uma superstição religiosa que a modernidade superou? Não, não é. Na semana passada, veio à luz o caso de um menino de 9 anos que, por capricho de dois trabalhadores de uma fazenda em Aurilândia, em Goiás, teve o corpo queimado com um ferro de marcar gado. Não existe qualificação mais precisa para o ato de queimar um garoto por diversão: trata-se de maldade. E o adjetivo “mau” também serve com total propriedade para caracterizar as ações de Sílvia Calabresi Lima, presa em flagrante por tortura, em Goiânia. Sua vítima, L., de 12 anos, apresenta marcas de ferro quente na pele e necrose embaixo das unhas das mãos, entre outros ferimentos.
A hipótese de uma psicopatia é forte no caso de Sílvia. O psicopata entende intelectualmente a diferença entre o bem e o mal, mas é desprovido de piedade, empatia, remorso – emoções que estão na base do senso moral das pessoas. Contrariando as ilusões de certo humanismo que acredita na possibilidade de reeducar qualquer criminoso, indivíduos assim são irrecuperáveis. Com recurso a técnicas recentes como a ressonância magnética funcional, a ciência tem se dedicado a mapear as áreas do cérebro responsáveis pelas decisões morais – áreas que apresentam atividade reduzida nos casos de psicopatia. As causas do distúrbio, porém, ainda não são compreendidas. O problema do mal dificilmente será resolvido nos laboratórios de neurociência. “O mal é um conceito humano, social. A neurociência não pode dizer o que é ou não mau”, diz o neurocientista Jorge Moll Neto, do Instituto de Pesquisa da Rede Labs-D’Or, no Rio de Janeiro.
Seria cômodo imaginar que todo mal vem de uma falha neuroquímica, mas não é assim. A psicopatia, afinal, é um distúrbio raro. Não explica o mal em grande escala – genocídios como os que ocorreram na Bósnia ou em Ruanda nos anos 90, por exemplo. A psicologia social tem iluminado alguns mecanismos que atuam na disposição das massas para colaborar em projetos monstruosos. O que esses estudos revelam não é lisonjeiro para a natureza humana: a tendência das pessoas de se conformar à pressão do grupo social pode levá-las, com relativa facilidade, a atos criminosos. O exemplo clássico desse mecanismo foi exposto no chamado Experimento da Prisão de Stanford, em 1971. Uma falsa prisão foi improvisada em um corredor da Universidade Stanford, nos Estados Unidos, e estudantes que se voluntariaram para a pesquisa foram divididos aleatoriamente em dois grupos, um de guardas, o outro de prisioneiros. Eram todos jovens normais, sem nenhuma tendência notável para a violência. Mas as humilhações a que os prisioneiros foram submetidos – revistas sem roupa, exercícios forçados, cela solitária – tornaram-se tão intensas que o estudo, programado para durar duas semanas, teve de ser interrompido no sexto dia. “Nem todos os guardas agiram mal. Os guardas ‘bonzinhos’, contudo, não fizeram nada para deter os abusos dos violentos”, lembra Philip Zimbardo, psicólogo que conduziu a pesquisa – e que, desde então, vem analisando casos de crueldade praticados ao abrigo de instituições (já esteve até no Brasil, entrevistando policiais que torturaram durante a ditadura militar).
Os guardas, argumenta Zimbardo, sentiam-se autorizados a agir com brutalidade pela cobertura institucional da universidade. A ação em grupo diluía a responsabilidade individual. E os prisioneiros passaram por um processo de desumanização – eram chamados por um número, não pelo nome –, o que tornava mais “aceitáveis” os maus-tratos. Esses três elementos – respaldo de uma organização, ação em grupo e desumanização do outro – estão quase sempre presentes em situações nas quais prisioneiros de guerra são humilhados ou torturados, como no infame caso de tortura em Abu Ghraib, em 2003. Os maiores crimes políticos do século XX foram cometidos por regimes que demonstraram pleno entendimento desses mecanismos da psicologia de grupo – e que os levaram a extremos. A lógica de rebanho que às vezes rege a psicologia das massas, porém, não exime os que participam de genocídios e massacres. A responsabilidade individual é inescapável. O Tribunal de Nuremberg, que julgou líderes nazistas, não aceitava a obediência a “ordens superiores” como justificativa para crimes de guerra.
A perspectiva religiosa sobre o mal tende a enfatizar as escolhas individuais. O cristianismo vê o mal como fruto do orgulho humano (ou angélico, se pensarmos em Lúcifer, o anjo que cai da graça divina por sua soberba). É por imaginar a si mesmo como auto-suficiente, como uma espécie de divindade, que o homem se sente no direito de humilhar, ferir, matar o próximo. Mas a natureza cega do mal – especialmente do mal da natureza, os terremotos, enchentes, incêndios e outras catástrofes – coloca um problema para os religiosos: se Deus é bom, por que coisas más acontecem até mesmo aos justos? Que sentido pode ter, por exemplo, o drama de Madeleine McCann, a menina inglesa que sumiu de seu quarto de hotel em Portugal, em maio de 2007, e nunca foi reencontrada? Os grandes pensadores do cristianismo tentaram resolver esses dilemas. Santo Agostinho, por exemplo, dizia que, se bons e maus sofrem igualmente, é para que os primeiros possam provar sua virtude. Assim como o fogo “transforma a palha em cinza e faz brilhar o ouro”, o infortúnio purifica os virtuosos e destrói os perversos, diz Agostinho em A Cidade de Deus.
Na história do pensamento ocidental, foi o cristianismo que aprofundou a noção de mal. Os filósofos gregos não se dedicaram tanto ao tema. O estoicismo, escola de pensamento grega e latina que pregava a aceitação serena do mundo, praticamente recusava a noção. “A natureza do mal não existe no mundo, pois não se concebe um fim destinado a não se realizar”, dizia Epicteto, um dos mestres estóicos (talvez não seja por acaso que o imperador romano Marco Aurélio, outro clássico do estoicismo, mandava crucificar cristãos). A filosofia por muito tempo desconfiou da concepção de mal – seria um problema do domínio da teologia. Mas pensadores como Kant se esforçaram para dar uma dimensão laica ao mal. O mal é um conceito difícil, sem dúvida, mas hoje está bem estabelecido que se pode defini-lo sem recurso à fé. “O mal é toda ação voltada para eliminar as condições de uma existência racional”, diz o filósofo Denis Lerrer Rosenfield, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, autor de Retratos do Mal. Nesse conceito cabem, por exemplo, da violência contra uma criança ao atentado de 11 de setembro – todas ações que atentam contra a racionalidade.
O mal também é um grande tema da arte e da literatura, que testa os limites da racionalidade social por meio da ficção. Basta pensar na galeria de vilões de Shakespeare e em particular no insidioso Iago, de Otelo, que parece exercer sua ruindade apenas pelo prazer de ser ruim. Já se notou que o inferno de Dante é mais interessante do que seu paraíso, e que o grande personagem de Paraíso Perdido, de Milton, é satanás, e não Deus. Thomas De Quincey, escritor inglês da virada do século XVIII para o XIX, observou que a experiência estética coloca nossa moral em suspensão. Ele lembra o momento de Macbeth, de Shakespeare, em que o personagem-título acaba de matar o rei Duncan – e então alguém bate nos portões do castelo. Por um momento, o espectador se angustia com a possibilidade de Macbeth ser flagrado em seu crime. Shakespeare nos faz torcer pelo monstro e, com a maestria do gênio, revela o monstro que habita em cada um de nós e que precisa ser sempre vigiado.
As pessoas não torcem pelo monstro quando ele aparece no noticiário batendo em crianças com um martelo. Mas o fato de essas notícias produzirem tanto interesse atesta o fascínio do mal. Esses casos tenebrosos lembram que ele segue presente. A história ocidental conheceu progressos. Práticas bárbaras que já foram tomadas como normais por sociedades antigas – o sacrifício humano, o canibalismo, o assassinato de bebês com defeitos físicos – hoje são inaceitáveis. Mas será ingênuo pensar que esse progresso possa domar a besta humana. “A razão não explica tudo. Há uma dimensão monstruosa no ser humano que parece não fazer sentido. E é preciso respeitá-la”, diz o filósofo e teólogo Luiz Felipe Pondé. Respeito, nesse caso, não se confunde com amor: é a distância que se guarda em relação àquilo que pode nos aniquilar.
O mal na religião
• Todas as grandes religiões compreendem alguma força de desordem ou destruição – o Mal. A dualidade entre bem e mal foi provavelmente estabelecida pelo zoroastrismo, religião da antiga Pérsia que pode ter influído sobre o judaísmo e o cristianismo
• A primeira figura do mal na Bíblia é a serpente do Éden, que ocasiona a queda do homem. O Satã do Antigo Testamento ainda não é exatamente um opositor malévolo de Deus. No Livro de Jó, por exemplo, ele atua como uma espécie de promotor dos tribunais divinos. Jó é um homem bom e temente a Deus, que é atingido por uma série de catástrofes. Seu problema fundamental continuaria intrigando filósofos e teólogos por séculos: por que coisas más acontecem a pessoas boas?
• Santo Agostinho e Santo Tomás de Aquino, os grandes filósofos do cristianismo, vêem a soberba humana como a raiz do mal e a graça divina como a fonte do bem. Agostinho admite que coisas ruins acontecem igualmente a pessoas boas e más, mas diz que é a atitude piedosa diante do infortúnio que faz a diferença
O mal da natureza
• Desastres naturais como o terremoto de Lisboa, em 1755, provocaram os filósofos a pensar sobre a possibilidade de o universo – ou Deus, seu criador – ser mau. O terremoto pôs em dúvida as idéias de filósofos como Gottfried Wilheim Leibniz, que havia postulado um universo organizado em torno do bem. Essa perspectiva otimista foi ironizada por Voltaire em seu livro Cândido
• O naturalista inglês Charles Darwin, pai da teoria da evolução, pôs em xeque a idéia de uma natureza projetada por um Deus bondoso. Ele lembrava o exemplo de uma vespa que paralisa outros insetos para que sejam comidos vivos por suas larvas. E conclui que um “Deus onipotente e benéfico” não teria criado um ser assim
O mal do homem
• Aristóteles dedica sua Ética a Nicômaco à perseguição da virtude, e estóicos como Epicteto pregavam a boa vida, reconciliada com o mundo tal como ele é. O mal, porém, não chegava a constituir um problema para a filosofia grega
• O pensador renascentista italiano Nicolau Maquiavel inaugura, em seu clássico O Príncipe, uma perspectiva pragmática do bem e do mal: o governante deve, em certas ocasiões, ignorar os preceitos morais e até praticar o mal para se manter no poder
• Em uma de suas últimas obras, A Religião nos Limites da Simples Razão, o filósofo alemão Immanuel Kant examinou a vontade maligna do ser humano, que ele chamou de “mal radical”
• No século XIX, o filósofo alemão Friedrich Nietzsche tentou transcender o bem e o mal em sua filosofia, idealizando um “super-homem” que estaria além de qualquer moral. A obra de Nietzsche não pode ser confundida com uma defesa do mal – mas ele era um crítico feroz dos valores cristãos
• Depois da II Guerra Mundial, o trauma político do holocausto nazista trouxe uma nova imagem do mal. Influenciada pela idéia de “maldade radical” de Kant, a filósofa Hannah Arendt diagnosticou a “banalidade do mal” do totalitarismo, cujas políticas perversas são decididas com frieza burocrática
• Na segunda metade do século XX, a psicologia social tem estudado como certas organizações coletivas – um partido político, um grupo armado – podem induzir pessoas comuns a cometer atos monstruosos. Na última década, a neurociência vem obtendo avanços no mapeamento cerebral dos psicopatas, indivíduos que não têm decisões morais
FONTE: Revista Veja

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